Festivais ou rituais?
A política, religiosidade e sociabilidade festivaleira,
ou
A importância do bobo da corte.

Parte V – Comunidade, cultura, identidade local e apego.


Cultura local e vida comunitária.
 

Festivais estão conectados a culturas e a lugares, dando, a cada um deles, identidade e ajudando a ligar pessoas às suas comunidades. Similarmente, festivais e outros eventos planeados podem promover e reforçar a identidade de grupo. 

O papel dos festivais em desafiar a perceção da identidade pode ser particularmente importante. Num estado com uma imagem própria particularmente pobre, como produto turístico, a criação de uma identidade positiva, mesmo se criada por mercantilização turística, é uma consideração importante.

É importante definir um senso de comunidade e lugar. É útil avaliar todos os fatores-chave que contribuem para a realização de festivais eficazes e como o senso de comunidade e lugar emergem como elementos principais. Para que lugares alcancem distinção e estatuto precisam ser criados.

Organizadores de eventos podem oferecer experiências tangíveis e intangíveis para conectar pessoas a lugares. É por isso que alguns eventos populares estão localizados em locais espetaculares, sugerindo que este senso de lugar envolve sete sentidos: os cinco sentidos tradicionais, o “dom da mente” e a “interpretação das suas faculdades”, sendo que os festivais facilitam uma entrada nessas dimensões sensuais, nomeadamente se forem ao ar livre ou perto de rios, áreas costeiras ou florestas tropicais. O lugar (e a paisagem) pode fornecer um meio para valores e crenças comunitários que são celebrados em eventos culturais comunitários, através da nomeação do evento. Um senso de comunidade é uma parte quase invisível, ainda que crítica, de uma comunidade saudável e, embora seja difícil de definir, inclui a imagem, espírito, carácter, orgulho, relacionamentos e trabalho em rede da comunidade. 

“Os valores, interesses e aspirações dos indivíduos são influenciados pelo seu ambiente biofísico (espaço e lugar) → que leva a um senso de comunidade → que influencia como a comunidade celebra → que afeta o bem-estar da comunidade → que por sua vez informa o ambiente em que indivíduos e grupos definem os seus valores e crenças. Os moradores partilham tudo isso com os visitantes. (…) Observa-se que as comunidades estão a criar festivais e eventos para enfatizar o valor que reconhecem nos sentimentos de propriedade e pertença gerados pelos participantes residentes. A dimensão extra, de envolver os visitantes, envolveu o interesse do sector de turismo. Os festivais podem ser os guardiões dos valores da comunidade, encorajando algumas pessoas e mantendo os outros fora.” (Derrett, 2003, p.52)

Apesar desta ideia de inclusão/exclusão ser evidenciada por Derrett, importa contextualizá-la, relembrando a definição de festival de Falassi. Nas ciências sociais, um festival é:

… uma ocasião social periodicamente recorrente, na qual, através de uma multiplicidade de formas e uma série de eventos coordenados, participam direta ou indiretamente e em vários graus, todos os membros de toda uma comunidade, unidos por laços étnicos, linguísticos, religiosos, históricos, e que partilham uma visão do mundo. Tanto a função social como o significado simbólico do festival estão intimamente relacionados com uma série de valores evidentes que a comunidade reconhece como essenciais à sua ideologia e visão de mundo, à sua identidade social, à sua continuidade histórica, e à sua sobrevivência física, que é, em última análise, o que os festivais celebram. (Falassi, 1987, p.2)

Na proposta de definição de festivais comunitários de Jepson e Clarke, a dimensão inclusiva destes festivais é clara: “Evento comunitário temático e inclusivo ou série de eventos que foram criados como resultado de um processo de planeamento comunitário inclusivo para celebrar o modo de vida particular das pessoas e grupos da comunidade local com ênfase em espaço e tempo particulares”.

O termo festival é comumente confundido com uma série de espetáculos, uma festa ou com promoções comerciais, e muitos festivais não refletem o seu significado ou parecem esquecer o que celebram, diminuindo-os a um programa de entretenimento público ou a um tempo especial de diversão, ao invés de ser uma celebração. Um festival é mais que uma série de performances musicais. Os festivais revelam muito sobre a cultura, desde os processos de sociabilização, o comportamento aprendido ou os modos de vida moldados pela religião, costumes, tradição e papéis, e sobre o funcionamento das sociedades. Os festivais são mecanismos de sustentação social através dos quais as pessoas expressam identidades, se relacionam com o lugar e comunicam com o exterior. Fornecem um texto rico que providencia muito conhecimento da cultura local e da vida comunitária. Como uma celebração, é uma performance que implica a apresentação de símbolos culturais, sendo pública, sem exclusão social, sendo um entretenimento participativo. Os festivais são vistos como espaços contestados onde as práticas simbólicas são usadas para consolidar ou resistir às normas e aos valores prevalentes. Nos tempos de festivais, as pessoas fazem algo fora do normal, ou abstêm-se de algo que normalmente fazem, têm comportamentos extremos que são normalmente regulados. São rituais, acontecem num espaço e num tempo excecionais, com significados além dos seus aspetos literais e específicos.

Inclusão e exclusão social
 

A inclusão social é um dos principais motivos para encenar eventos e festivais, sendo principalmente atingida pela sociabilidade e pela interação social, o que é normalmente facilitado através do fornecimento de uma atmosfera de tolerância e inclusão na qual todos são bem-vindos. O principal papel de um festival comunitário é aumentar o envolvimento e a inclusão, apesar de que também é importante que o processo de planeamento seja inclusivo.

Ainda que exista evidência de que os festivais encorajam e facilitam inclusão e interação entre estratos sociais, origem étnica e divisões de género, há ocasiões em que podem envolver práticas de exclusão e de elitismo. Também podem operar como espaços de exclusão, intencionalmente ou não. Ainda que a exclusão possa ser aceite em certos contextos históricos ou culturais, por vezes, os festivais falham na tentativa de ser inclusivos. Noutras vezes, os festivais são intencionalmente desenhados como espaços contestados, permitindo um fórum socialmente sancionado para desencadear tensões sociais, o que sugere que algumas partes podem ser excluídas intencionalmente. Na maior parte das vezes, as práticas exclusivistas não são intencionais ou resultam da falta de compromisso com todas as secções da comunidade. Duas questões-chave podem resultar em exclusão: a presença de múltiplos intervenientes e a forma como gerem questões de diversidade. Dada a diversidade de intervenientes, há o risco de que existam sentimentos de exclusão entre os que não estão totalmente satisfeitos com a organização do festival. Alguns festivais excluem certos segmentos ao proteger o espaço sagrado do festival de forasteiros, marginalizando ou excluindo turistas do envolvimento do festival, ou ao privilegiar visitantes ou turistas e aumentar a insatisfação e exclusão dos residentes locais.

Embora os festivais possam fornecer uma plataforma para grupos marginalizados ou minoritários, os festivais também podem ser vistos como uma demonstração de poder se a maioria existente puder usar o festival como forma de exercer hegemonia sobre grupos menos poderosos. Um festival que não se adapte à natureza mutável do lugar pode correr o risco de excluir (embora involuntariamente) secções da comunidade. O isolamento e a exclusão de grupos comunitários podem ser aumentados por abordagens top-down que não conseguem a adesão de comunidades marginalizadas. A falta de apropriação dos festivais comunitários pelas comunidades que se destinam a servir podem lançar as bases para a hegemonia e para uma minoria exercer e manter o poder no âmbito do processo de planeamento do festival, contribuindo para a apatia em grandes secções da comunidade local que não estão capacitadas para fazer quaisquer alterações ao festival.

Festivalscapes

Os festivais emergem da congruência de três elementos principais: o destino (local), as pessoas que aí residem e os visitantes que são atraídos para o festival. Tudo isso é sustentado pela paisagem física em que eles colaboram. Esses elementos geram e reproduzem as identidades e valores de cada comunidade, pois não permanecem constantes. O marketing de destino, o turismo cultural e um senso de comunidade e de lugar essencialmente manifestam a mercantilização de um modo de vida. Festivais podem ser usados para construir comunidades sendo que a celebração pode vincular uma comunidade e pode ser o instrumento que mantém a comunidade numa experiência nova e constantemente renovadora. Os festivais ocupam uma posição significativa em três áreas da condição humana: 1) celebram um senso de lugar através da organização de atividades inclusivas em ambientes específicos e seguros; 2) fornecem um veículo para as comunidades receberem visitantes e compartilharem tais atividades como representações de valores, interesses e aspirações aceites pela comunidade; e 3) são a manifestação externa da identidade da comunidade e fornecem um identificador distintivo de lugar e pessoas.

Existe a necessidade de desenvolver o festival como um destino face aos benefícios potenciais de encenar um evento. Considerando uma abordagem multicamadas que enfatiza o lugar como uma construção social que emerge da interação e da relação bidirecional entre o indivíduo e o lugar, o lugar é um conceito moldado por crenças individuais. 4 dimensões são consideradas para manter essa relação: identidade do lugar (crenças sobre relações entre o eu e o lugar), dependência do lugar (o grau em que sustenta o comportamento), apego do lugar (ligação emocional com um lugar) e clima do lugar (atmosfera). 

Existem duas maneiras distintas em que o local do festival é criado: local de festival e lugar do festival. O local de festival ocorre quando se localiza num local não específico com pouca relevância geográfica; a encenação é responsável por criar uma noção de lugar. A identidade e o apego, neste caso, são restringidos. A identidade do local está mais ligada ao festival do que a qualquer lugar geográfico, e é baseada em crenças criadas através de fontes de informação tendencialmente mais abstratas, o que pode causar dissonâncias entre expectativas e realidade e, consequentemente, períodos de harmonização mais longos. Por outro lado, o lugar do festival situa-se num local já estabelecido. Existir independentemente do festival significa que um grau de identificação com o local já pode existir. Nessas situações, os indivíduos obtêm uma ideia mais concreta das experiências prováveis do festival. A existência de consonância entre as expectativas e a realidade permite que uma identidade exata baseada no lugar se desenvolva e o apego ao lugar se torne mais forte e imediato. Existe uma necessidade de associar o apego ao local no marketing mix através de comunicações precisas, com moderação na utilização de recursos visuais, e de gestão de expectativas baseadas no local, que proporciona uma imagem realista desde o início. A consistência também deve ser encorajada para assegurar experiências plurais constantes e esperadas; enfatizar o lugar do festival levará a eventos melhor definidos, a um apego mais rápido e a um grau de lealdade ao local. Isso é vital para garantir um maior número de visitas de retorno, independentemente da experiência do festival.

O caso dos festivais transformacionais

As características da vida que levaram a que pessoas de classe média-alta, educada, liberal, espirituais mas não religiosos, numa modernidade neoliberal e de capitalismo tardio, procurassem e alimentassem o crescimento de antíteses utópicas na forma de festivais transformacionais podem estar associadas ao que os participantes identificam como um sentimento de estar em casa num ambiente seguro e protegido, ou seja, estar numa comunidade de apoio que está relacionada a sentimentos de abertura, conexão a outros, alegria e liberdade, o oposto de estar numa sociedade em que as pessoas se sentem isoladas, desconectadas de outros, confinadas (não-livres) e, como resultado, infelizes, uma sociedade insegura, precária, onde as pessoas não se sentem em casa e se sentem deslocadas. Estas últimas características são associadas à modernidade globalizada sob o neoliberalismo por vários antropólogos que, juntamente com psicólogos, sociólogos e críticos da cultura popular, têm investigado o deslocamento, o isolamento social e a infelicidade nos últimos 20 a 30 anos. A precariedade define a condição moderna, é a condição de ser vulnerável aos outros, é ser atirado para conjuntos não planeados e mutáveis num mundo instável, é viver num quadro de imprevisibilidade, indeterminação e mudança contínua. Esta é uma condição omnipresente no contexto atual da globalização, em que, sem estruturas estáveis de comunidade, até a questão da sobrevivência se tornou uma realidade para grande parte da população mundial.

Os festivais transformacionais acontecem em espaços remotos ao ar-livre, na natureza, no verão, ao longo de vários dias, e as suas principais características são construídas à volta de palcos musicais e pistas de dança. São espaços-tempo cheios de potencial para colusões criativas e encontros sinceros, cujos ecos se prolongam depois do festival, e interrogam ou interrompem os ritmos potencialmente alienantes das cidades urbanas. Os festivais transformacionais proporcionam um ambiente para todos os participantes se envolverem numa tomada de risco semelhante em que podem tirar a máscara que esconde os seus verdadeiros eus intelectuais, emocionais, físicos e espirituais.

O ambiente comunitário em festivais transformacionais, como exemplo, é captado, no movimento de uma condição de alienação implícita no monoteísmo, do materialismo possessivo, o patriarcado, o patriotismo, e um movimento correspondente em direção a uma resolução: realização, utopia, consciência, paz e unidade. Na atmosfera do festival, é criado um profundo sentimento que inclui noções de unidade e aceitação da diversidade (total aceitação, abertura de espírito, liberdade de expressão), assim como é dado uma ênfase a espaços comunitários, à sociabilidade, à expressão artística, ao igualitarismo e ao amor por todos, ideais estes que não são facilmente encontrados fora destas comunidades. Estas noções são transformadoras “no seu próprio direito, invocando o aumento potencialmente duradouro da empatia, respeito, compreensão e paz nos participantes das comunidades de E.D.M., resultando na alteração de visão do mundo dos participantes, o que, facilitado através de ambientes em festivais – combinados com outras experiências místicas e transpessoais – pode conter um imenso potencial de transformação. Este senso de comunidade promove uma abertura que pode levar ao surgimento de estados alterados de consciência e experiências humanas excecionais, transformadoras, místicas e transcendentes.

Festivais transformacionais são conhecidos por um sentido de comunidade que enfatiza a reflexão e crescimento pessoal. Os aspetos de comunidade, música, dança e espiritualidade ainda estão no centro desses festivais. Esses festivais continuam a enfatizar as cocriações de um espaço ideal em que cada indivíduo contribui. Festivais transformacionais e o movimento de festas conscientes como incorporando ideias de comunidade, ecologia, espiritualidade e autodesenvolvimento, assim como contendo aspetos de inspiração, conexão e cura. Estes festivais possibilitam que os jovens imaginem os seus próprios grupos e outros, afirmem o seu carácter distintivo e afirmem que não são membros anónimos de uma massa não identificada, ao lhes dar recursos e oportunidades para o desenvolvimento pessoal e espiritual. Há muito poucas oportunidades na cultura ocidental para que os povos estejam juntos como um coletivo e seja dado um espaço criativo sem expectativas, constrição de estruturas sociais, ou linhas-tempo rígidas. 

Diversas variedades de cosmopolitismo estão presentes em festivais de dança, incluindo a relativização da própria identidade, reconhecimento positivo do outro, avaliação mútua de culturas e uma cultura normativa partilhada, que envolve relações que são mediadas por uma orientação para a consciência mundial. O que motiva a assistência dos participantes destes festivais é o gosto da celebração da música, dança, arte, criatividade e autoexpressão, sendo que aspetos importantes da experiência incluem conexão, inclusão, comunidade e aprofundar relacionamentos, numa procura exploratória de crescimento pessoal, expansão de consciência e espiritualidade. Nos festivais, o sentido de identidade e de propósito é nutrido e reabastecido pelo amor e solidariedade que lá encontram, onde o processo de cocriar e encontrar ambientes de suporte proporciona a reimaginação e reafirmação de visões de vida. Os festivais transformacionais são espaços-tempo em que as pessoas experimentam maneiras de conhecer, relacionar e criar centradas no amor. No seu coração, os festivais podem ser vistos como metanarrativas sobre o amor.

Bibliografia:

Autoria das Partes I a IV: João Carvalho [1], Victor Afonso [2], Nuno Gustavo [3].
Autoria das Partes V a XII: João Carvalho[1]

Baseado no trabalho de projeto “Plano de negócios. Festival Cósmico. Festival Transformacional”, de autoria de João Carvalho, com orientação do Professor Especialista Victor Afonso e coorientação do Professor Doutor Nuno Gustavo, para conclusão do Mestrado em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos, pela Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Apresentado e defendido a 27 de dezembro de 2019.

Maio de 2020.

[1] Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos; Beach Break®.

[2] Professor Especialista (Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril; Centro de Estudos e Formação Avançada em Gestão e Economia da Universidade de Évora).

[3] Professor Doutor (Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril; Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação em Turismo).