Festivais ou rituais?
A política, religiosidade e sociabilidade festivaleira,
ou
A importância do bobo da corte.

Parte VIII – Festividade, liminaridade, o carnavalesco (continuação).

Festividade orgânica

É necessário um conhecimento sobre a orgânica da festividade de forma a oferecer experiências únicas e diversificadas, permitindo a emergência de um sentido comunal de coração e de alma, ao atender às necessidades comportamentais, psicológicas e internas inerentes ao envolvimento de um participante a nível físico, mental, emocional, social ou espiritual.

Não se pode presumir que existam experiências liminoides ou impactos sociais em festivais comunitários. É necessário incorporar a festividade orgânica na gestão do festival.

O layout espacial pode permitir e incentivar experiências tipo liminoide mais improvisadas, ao oferecer um fluxo contínuo de experiências ao invés de unidades estandardizadas, em que o desconhecido está ao virar da esquina, e o que ocorrerá em seguida cria um sentido mais orgânico de aventura e surpresa, com a oportunidade para a reação espontânea do participante fora da experiência espacial ordinária.

Para criar oportunidades para experiências liminoides em festivais comunitários, organizadores de eventos devem colocar os participantes em movimento. Isto é feito através dos elementos originais da atividade festiva: batidas rítmicas fortes, graves agitados e batidas de tambores, da música alta. As diferenças demográficas são quebradas como participantes de todas as idades, raças, classe económica e social, género e estilo de vida se perdem, unindo-se e colando-se com outros quando a música alta e a dança os levam em movimento.

As artes visuais também são um ingrediente importante da festividade orgânica. Isto pode envolver carros de arte, arte performativa, caracterização, pintura de murais… todos eles ligados à festividade orgânica do passado, e feitos com o intuito de quebrar barreiras sociais, aumentando a conexão entre participantes. Criar arte e ser uma parte colaborativa do processo e da performance, no entanto, é o que conduz a uma experiência liminoide.

A festividade real é muito mais do que o spectatorship passivo, tendo-se originado no espiritismo dos nossos ancestrais distantes, expressos com as artes performativas e dramáticas do canto rítmico e dançando a altas batidas graves, assim como com formas de arte visual de trajes, máscaras, e decoração, tudo combinado num sentimento de abandono selvagem. São esses tipos de atividades que tiram as pessoas das suas cadeiras e fisicamente, emocionalmente, e cooperativamente envolvidos na interação social… esses tipos de atividades que podem desenvolver e aumentar a ligação e construir pontes no capital social… estes tipos de atividades sobre as quais os produtores de eventos devem adquirir uma compreensão e sensibilidade para fornecer a experiência liminoide, autêntica que o participante do festival da comunidade de hoje procura e exige. A sustentabilidade do festival comunitário reside no seu passado organicamente festivo.(Biaett, 2015, p.17)

A festividade moderna, no entanto, evoluiu como um crédito ao consumismo.

Os maiores desafios da festividade estão relacionados com a omnipresença de novos meios de comunicação social e com a cocriação de atividades por parte dos consumidores. O poder da tecnologia é uma força motriz e transformadora na festividade. A fantasia da festividade exige, agora e em certa medida, a digitalização da experiência, pois é ali que os momentos mágicos da experiência são exibidos, o capital decidido e a fantasia da festividade formada, assim como a narrativa é contada. A performatividade da fantasia da festividade é agora uma tecnologia cocriada do self, enquanto os consumidores constroem, recontam e consomem essas narrativas dinâmicas de identidade.

Para entendermos a complexidade sociocultural local/global dos festivais de dança, importa abordar o termo de “festivalscapes” (i.e., paisagem de festival), um conjunto de fluxos culturais, materiais e sociais que emergem e são estabelecidos durante um festival específico. Os festivais podem ser pontos de convergência e de interação entre diferentes padrões e valores culturais, estéticos e políticos que salientam problemas levantados pela articulação múltipla dos fluxos culturais globais, da vida local e da espacialidade.

 Tomando como exemplo a festividade de Glastonbury, a sua gestão moderna reflete o poder produtivo e racional da gestão na transformação da festividade num componente central das indústrias criativas, equilibrando o caráter fantasioso da festividade com a gestão modernista, ao organizar os espaços, delimitando as liberdades de movimentação espacial de forma hierárquica, com o objetivo de acumular capital, o que mascara o subproduto mais escuro de contestação sobre o capital. Caso a festividade fantasiosa se torne indiferenciada da festividade quotidiana, Glastonbury perde o seu capital, poder e marcador de identidade, sendo necessária uma experiência de conforto áspero para não correr o risco de uniformizar a festividade.

Os festivais transformacionais

O caso dos festivais transformacionais, o que inclui todos os festivais no espectro alternativo de eventos, permite que os participantes se tornem liminares enquanto ocupam a estrutura de espaço-tempo demarcada do evento. Este mundo de transição, acedido pelos participantes enquanto cidadãos festivos, possui condições limítrofes e lógicas (ou ilógicas) carnavalescas às quais os habitantes são obrigados a se render. O estado de espírito predominante não é inconsistente com um rito de passagem, um ritual estruturado que possui o poder de transformar o estatuto, a identidade e a vida de um indivíduo.

A inovação em eventos requer esforços estratégicos para ganhar o favor, e contruir o apoio, do público que vai para o evento. O valor do festival emerge na antecipação de uma experiência desejada, e não só no seu consumo. O elemento de surpresa constrói emoção. Outra circunstância que garante a inovação refere-se à capacidade de desenhar a experiência de retorno a um lugar familiar. Enquanto a procura pela originalidade na pista de dança é contrabalançada pelo desejo pelo familiar, pelo regresso às origens, esta tensão festiva remete-nos para a lógica do estado de fluxo. Nas cenas da música de dança, a vibe representa um curioso ato que equilibra novidade e familiaridade, inovação e autenticidade, mudança e êxtase, cujas tensões iluminam a experiência mais cativante, a alteridade familiar do êxtase, um estado psíquico no qual o indivíduo se encontra como que transportado para fora de si e do mundo sensível, sentindo-se inefavelmente unido ao transcendente.

O desafio de otimizar a experiência musical procurada para se entrar no fluxo envolve o equilíbrio entre os desafios e a habilidade do ator, a questão chave para evitar o desinteresse ou a frustração. Quando esse equilíbrio é justo, aumenta a concentração e a sensação de estar em harmonia com as pessoas envolvidas e com a atividade. A natureza progressiva da música de dança eletrónica permite que os participantes entrem em estados experimentais e transformadores de identidade.

Quanto mais os eventos crescem, mais os seus domínios limítrofes se complexificam. Enquanto eventos culturais primordiais representam um caso discutivelmente simplista de liminaridade, contextos hiperliminais surgem em eventos de maior escala. Eventos transformacionais tendem a oferecer inúmeros meios para a transição, o que possibilita que o público execute identidades variáveis emergentes entre o estado de consumidor e produtor, entre entretido e artista. Estas condições liminares complexas fazem com que os eventos dependam do desenvolvimento de indústrias culturais dedicadas a aumentar as condições de liminaridade dos participantes através da otimização do design da experiência de eventos, tecnologias sensoriais e artes prosumer (i.e., produtor-consumidor).

“O modelo de Jafar Jarai de ‘cultura turística’ é baseado na teoria sócio-antropológica referente à liminaridade, e na noção de festividade de Falassi, como um tempo que é ‘fora do tempo comum’. Essencialmente, as pessoas voluntariamente viajam para, ou entram num local específico do evento por períodos definidos de tempo, para se ocupar em atividades que são fora do comum e para ter experiências que transcendem o comum – experiências disponíveis apenas para o viajante ou para o visitante. Além disso, o conceito de Csikszentmihalyi [,] e Csikszentmihalyi e Csikszentmihalyi [,] de ‘fluxo’ ou experiências de pico, a partir de estudos de lazer, encaixam-se bem nesse modelo. Facilitar o ‘fluxo’ pode ser algo que o designer do evento deseja alcançar, para um envolvimento máximo e algo que os altamente ‘envolvidos’ possam ter mais tendência a experimentar devido às suas predisposições.”  (Getz, 2008, p. 414)

Bibliografia:

BIAETT, Vernon (2015) “Organic Festivity: A Missing Ingredient of Community Festival”, In Jepson, A. e Clarke, A. (eds.), Exploring Community Festivals and Events, Nova Iorque: Routledge, pp.18-30.

FLINN, Jenny e FREW, Matt (2013) “Glastonbury: managing the mystification of festivity”, Leisure Studies, 33:4, pp.418-433.

GETZ, Donald (2008) “Event tourism: Definition, evolution, and research”, Tourism Management, 29:3, pp.403-428.

ST. JOHN, Graham (2015) “Introduction to Weekend Societies: EDM Festivals and Event-Cultures”, Dancecult: Journal of Electronic Dance Music Culture, 7:1, pp.1-14.

Autoria: João Carvalho[1]

Baseado no trabalho de projeto “Plano de negócios. Festival Cósmico. Festival Transformacional”, de autoria de João Carvalho, com orientação do Professor Especialista Victor Afonso e coorientação do Professor Doutor Nuno Gustavo, para conclusão do Mestrado em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos, pela Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Apresentado e defendido a 27 de dezembro de 2019.

Maio de 2020.

[1] Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos; Beach Break®.