Artigos de Opinião
Festivais ou rituais?
A política, religiosidade e sociabilidade festivaleira,
ou
A importância do bobo da corte.
Parte II – Fenómenos core: experiências e significados.
A base do estudo de eventos é a experiência do evento e os significados associados a eventos e às suas experiências. A experiência é pessoal e social. Os significados, pessoais, sociais, culturais e económicos, são múltiplos. Para alcançar as experiências desejadas, são necessários conhecimentos de cultura, artes e psicologia ambiental.
Desde a solene espiritualidade de peregrinações religiosas e rituais celebratórios, à diversão e folia do entretenimento, carnaval e festa, é vasta a potencialidade de experiências de eventos. A experiência do turismo de eventos deve ser percebida de forma holística, incluindo a conceptualização e estudo das dimensões comportamentais, afetivas e cognitivas, e o seu inter-relacionamento.
Os significados de três tipos de experiência podem ser explorados: a experiência autêntica, de lazer significativa e do local.
A autenticidade da experiência de um evento iniciou-se com os pensamentos de Van Gennep acerca da experiência humana e ritos de passagem. A participação em ritos é classificada em pré-liminal, liminal e pós-liminal. Todas as experiências liminares seriam, então, consideradas autênticas.
Turner, na sua teoria antiestrutura, revisitou e expandiu os pensamentos de Van Gennep, abordando a distinção entre liminaridade e liminoide, e entre eventos sagrados e profanos. Para Turner, o lazer era um estado de desconexão do normal, tendo identificado todo o processo de participação nos ritos como de transição do comum para o incomum como liminaridade, período em que a pessoa desenvolve um senso de autonomia e independência, indiferente à sua perceção regular e com potencial transformador para produzir uma atmosfera de prazer. Para Turner, experiências mais seculares e profanas, em carnavais e festivais, são descritas como liminoides. Falassi ampliou esta diferenciação, na sua classificação de eventos profanos, incluindo quatro cardeais do comportamento festivo: reversão, intensificação, inversão e abstinência.
Em todas as formas de liminaridade se encontra communitas, uma experiência de maior amigabilidade, abertura e com um sentimento de pertença a um grupo maior. Apesar de esta experiência em eventos temporários ser efémera e fugaz, quando pessoas se juntam a estranhos para participar em festas, ajudam-nos a tolerar e a dar sentido à vida. A experiência final é a redenção através da epifania ou a experiência de samadhi, ou unidade.
No entretenimento, em que se troca uma experiência por dinheiro, a componente afetiva pode estar incluída, apesar de que a experiência de encontrar o significado possa não resultar numa transformação. Na religião, ou em “compras sagradas”, não se encontra a procura da experiência do transcendente, pelo que essas são, muitas vezes, confundidas como experiência autêntica por pessoas desesperadas.
A experiência é um estado subjetivo de consciência moldado por respostas hedonistas, significados simbólicos e critério estético, ou fantasias, sentimentos e diversão, sendo mais satisfatória e memorável quando atinge o estado de fluxo. A teoria de fluxo inclui tanto a perda da autoconsciência como a transcendência da norma, pelo que, em festivais, a existência de uma experiência liminal pode ser identificada caso o comportamento dos participantes revele uma perda de autoconsciência, uma fusão de ação e consciência, um senso de autocontrole e um senso alterado de tempo. O fluxo refere-se à presença de uma sensação holística referente à ação de envolvimento total, sem necessidade de intervenção consciente e de acordo com a lógica interna, sendo experienciado como um só, entre momentos, com o sentimento de autocontrolo das próprias ações, e no qual não há diferenças entre o eu e o ambiente, o estímulo e a resposta, ou entre passado, presente e futuro. A experiência de fluxo tem, como características, a mistura entre ação e consciência sem dualismo, o incentivo através da centralização da ação, a perda do ego, o controlo das suas ações e do ambiente, a coerência e não contraditoriedade da ação com fornecimento de feedback claro e evidente, e o potencial de felicidade sem necessidade de objetivos ou recompensas.
Os festivais enquadram-se nos grandes eventos que oferecem experiências extraordinárias, distinguindo-se do fluxo diário de experiências, tal como os rituais de passagem, momentos de autenticidade ou de celebração em comum. Têm as características de uma performance, o movimento para um local à parte em que são atribuídos valores e papéis simbólicos aos objetos (adereços; cenários) e às pessoas (atores; audiência) e a diferenciação da observação de regras e convenções quotidianas. Tanto podem ser ritos de intensificação que sujeitam o participante a experiências extremas emocionais ou físicas que o conduzem a um maior autoconhecimento, como podem ser ritos de integração que consolidam os valores culturais partilhados e introduzem um sentido temporário de proximidade, ou communitas, através da interação com outros.
A experiência de lazer pode ser analisada através da pirâmide de lazer de Nash, sobre o uso do tempo de lazer. Nesta, os atos com valor negativo, abaixo de zero, incluem, por ordem ascendente, os atos antissociais (delinquência ou crime), os atos em prejuízo de si mesmo (excessos), e a participação passiva (ou “espectadorite”; matar o tempo, fuga, diversão, entretenimento). Os atos com valores positivos, considerados de “pura participação”, incluem a participação emocional (experiências significativas, alteração na apreciação do ambiente, necessidade de experiências profundas), a participação ativa (além da participação emocional, inclui interação física e social), e a participação criativa (emocional e ativa, com envolvimento de participação intelectual e colaborativa na criação das suas experiências de lazer, alerta, ativa, recetiva e transformada numa nova pessoa).
A experiência de lazer terá maior significado quanto mais uma pessoa se identificar com determinado evento, através da presença de uma pessoa conhecida, do local, tema, estatuto ou tipologia, ou da capacidade de canalização da emoção da multidão por parte dos participantes do festival. A significância da experiência será diretamente proporcional ao interesse do convidado, que tanto poderá levar à falta de repetição de visita, num extremo, ou à conversão em fã, no outro. A experiência poderá ser positiva mesmo que ocorram incidentes desagradáveis ou desafiantes, pois podem ser superados pelo indivíduo, com proveitos ao nível dos sentimentos de controlo e domínio.
O lugar e o espaço, considerados na perspetiva da experiência, incluem a sua essência intangível criada através da vivência, onde o contexto cria a intimidade do lugar. A experiência torna-se mais significativa se existirem outros elementos significativos. O lugar decorre da experiência personificada do eu, do espaço e do tempo. A crescente popularização dos festivais pode ser originada na existência de um lugar especial com significado, valor e ligação, tanto tangível como intangível, criado através da experiência humana íntima e personificada.
Um festival é um espaço em que os festivaleiros procuram uma experiência extraordinária, que apresenta problemas organizacionais especiais, dados os significados emocionais e simbólicos associados ao local em si. Para que a experiência dos participantes seja mais valorizada, levando à transformação e ao crescimento pessoal (os derradeiros objetivos da experiência), o espaço criativo para a cocriação da experiência deve ser oferecido pela organização. No festival, cada indivíduo optará pelo seu caminho, criará o seu próprio espaço (ou domínio experiencial, ou existencial), dentro do local físico, centrando-se em espaços onde se sente mais em casa, com música, atividades e companhia.
A compreensão da complexidade da experiência do visitante é representada através do prisma da experiência em eventos de Morgan, que junta elementos externos da gestão de evento (design; operação) aos elementos internos (significados e benefícios internos). Este prisma, baseado na distinção entre fatores push e pull das motivações turísticas de Crompton, e no prisma da identidade de marca de Kapferer, cria um modelo holístico da interação entre a gestão do evento e o visitante. A imagem do festival é composta por elementos de design e programação (que criam a personalidade do evento) e elementos físicos operacionais, que compõem os atributos práticos do evento. Estes criam a oportunidade para a interação social (entre visitantes e artistas, mas também com outros visitantes) e para a comunicação de significados culturais partilhados. Como resultado, o participante vai experienciar benefícios pessoais (como divertimento, socialização e autodesenvolvimento) e significados simbólicos (um senso de integração e identificação com significados externos e valores do evento). Os principais elementos identificados por Morgan como sendo importantes para o visitante são a escolha abundante, os momentos de espanto, a partilha de experiências, a centralidade grupal (onde os momentos de espanto e as interações sociais acontecem), a distinção do local, a avaliação holística da experiência e a criatividade da comunidade (cocriação).
Bibliografia:
BIAETT, Vernon (2013) Exploring the On-site Behavior of Attendees at Community Festivals: A Social Constructivist Grounded Theory Approach, Tese de Doutoramento: Arizona State University.
GETZ, Donald (2010) “The Nature and Scope of Festival Studies”, International Journal of Event Management Research, 5:1, pp.1-47.
GETZ, Donald (2008) “Event tourism: Definition, evolution, and research”, Tourism Management, 29:3, pp.403-428.
GETZ, Donald e PAGE, Stephen G. (2016) “Progress and prospects for event tourism research”, Tourism Management, 52, pp.593-631.
HASTINGS, Kathy A. (2015) Communitas, Civitas, Humanitas: The Art of Creating Authentic Sense of Community and Spirit of Place, Tese de Doutoramento: Holos University.
MORGAN, M. (2007) “Festival Spaces and the Visitor Experience”. In: CASADO-DIAZ et al. (eds.) Social and Cultural Change: Making Space(s) for Leisure and Tourism. Eastbourne, UK: Leisure Studies Association, pp. 113-130.
TURNER, Victor (1974) Liminal to Liminoid, in Play, Flow, and Ritual: an Essay in Comparative Symbology, Rice Institute Pamphlet-Rice University Studies, 60:3, pp.53-92.
Autoria: João Carvalho [1], Victor Afonso [2], Nuno Gustavo [3].
Baseado no trabalho de projeto “Plano de negócios. Festival Cósmico. Festival Transformacional”, de autoria de João Carvalho, com orientação do Professor Especialista Victor Afonso e coorientação do Professor Doutor Nuno Gustavo, para conclusão do Mestrado em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos, pela Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Apresentado e defendido a 27 de dezembro de 2019.
Maio de 2020.
[1] Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos; Beach Break®.
[2] Professor Especialista (Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril; Centro de Estudos e Formação Avançada em Gestão e Economia da Universidade de Évora).
[3] Professor Doutor (Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril; Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação em Turismo).