Festivais ou rituais?
A política, religiosidade e sociabilidade festivaleira,
ou
A importância do bobo da corte.

Parte IV – Autenticidade (identidade, comercialização, mercantilização).

Existe um discurso em curso sobre a autenticidade cultural dos eventos, muitas vezes com a preocupação particular de que o turismo comodifique eventos e corrompa a sua autenticidade, mas também que muitos eventos são criados por razões comerciais e exploradoras. Outro discurso relaciona-se com a preservação de tradições e significados em festivais.

A procura turística pelo autêntico, marcada por relações sociais autênticas que podem ser frustradas pela mercantilização do turismo, é a motivação de todas as viagens. 

Já na década de 60 existia uma preocupação acerca da perda de autenticidade de eventos, devido à oferta de “lazer conspícuo” e de experiências indiretas e artificiais dos anos 50. Eventos criados especificamente para corresponder às expectativas dos participantes foram considerados “pseudoeventos”, eventos que distraem o turista passivo que espera que as coisas aconteçam. 

A definição de autenticidade varia entre a perceção de autenticidade concentrada em consumidores (turistas) ou fornecedores. A afirmação subjacente é que os turistas são criadores ativos de autenticidade e a autenticidade comercializada é baseada na procura do consumidor. A autenticidade pode ser definida como um processo de negociação entre as duas perceções.

Outra perspetiva pensa os eventos como tendo vários estágios, um continuum de experiências autênticas cada vez maiores, em que uma pessoa se move de eventos de menor autenticidade para maior, com base na necessidade pessoal de ultrapassar o seu próprio nível de normal e ordinário. 

Os significados atribuídos às regiões de frente e de trás do espaço social, nos estabelecimentos sociais, podem ser usados para destacar os modos de divisões estruturais que se mantêm dentro da experiência turística. A parte da frente está associada aos anfitriões e convidados ou clientes, enquanto a parte de trás está associada ao relaxamento e preparação dos colaboradores. As configurações turísticas compreendem um continuum de seis estágios: a região da frente que os turistas tentam superar; a região da frente turística que aparece como uma região de trás; região da frente organizada como uma região de trás; região de trás que está aberta a pessoas de fora; região de trás modificada pela qual os turistas podem entrar; e a região de trás do espaço social que motiva a consciência turística. Os turistas procuram as regiões autênticas dos bastidores da comunidade anfitriã.

Existem dois lados do palco para os participantes; um para quem busca a experiência autêntica e um para quem está satisfeito apenas com o prazer. Isto remete-nos para a distinção de Turner entre experiência liminar e liminoide. Critérios mais rigorosos de autenticidade são associados à antropologia. Os antropólogos pertencem à categoria mais ampla de moderno, intelectuais alienados. A alienação e a busca pela autenticidade parecem estar positivamente relacionadas. Os turistas, no entanto, procuram autenticidade em diferentes graus de intensidade e rigidez, dependendo do seu grau de alienação da modernidade, sendo que a intensidade é proporcional à alienação e, a rigidez, inversamente proporcional. Existem cinco modos de experiência turística que variam segundo a profundidade da experiência procurada e que, no que lhe concerne, envolve a tendência de um turista se encontrar com o outro. Os cinco modos de experiência turística são, ordenados de uma maior para uma menor profundidade da experiência procurada, os seguintes: 1) Turistas existenciais; 2) Turistas experimentais; 3) Turistas experienciais; 4) Turistas recreativos; 5) Turistas diversionistas. Os turistas existenciais são os mais puristas dos turistas, procuram um contacto próximo com nativos, mas não têm atitude profissional nem capacidade crítica para avaliar a autenticidade, portanto, são mais propensos a formas sofisticadas de autenticidade encenada. Os turistas experimentais experimentam vários centros eletivos em potencial. Os turistas experienciais procuram participar indiretamente na vida autêntica dos outros. Os turistas recreativos, com uma atitude brincalhona de faz de conta, terão critérios muito mais amplos de autenticidade. Finalmente, os turistas diversionistas procuram mera diversão e esquecimento. Tanto os turistas experimentais como os experienciais tenderão a empregar critérios de autenticidade bastante estritos. Os turistas recreativos aceitarão como autêntico um produto com uma autenticidade encenada mais ingénua mesmo que não estejam convencidos da sua autenticidade. Os turistas diversionistas são despreocupados da autenticidade das suas experiências.

Quando a embalagem altera a natureza do produto, a autenticidade procurada pelo visitante passa a ser autenticidade encenada fornecida pelo touree [i.e., anfitrião]. As experiências não podem ser consideradas autênticas, mesmo que as próprias pessoas pensem que conseguiram tais experiências. Há um certo sentido em que todas as culturas são encenadas e, em certo sentido, são inautênticas. As culturas são inventadas, refeitas e os elementos reorganizados; assim, o conceito de autenticidade emergente, descreve este processo evolutivo.

Um produto cultural, ou uma característica dele, que a dado ponto é geralmente julgado como artificial ou inautêntico pode, com o passar do tempo, tornar-se geralmente reconhecido como autêntico. Assim, um festival aparentemente planeado e orientado para o turista pode, no devido tempo, ser aceite como um costume local autêntico. Autenticidade emergente enfatiza um aspeto ou refere-se a uma manifestação, do fenómeno mais amplo de invenção da tradição. Também se podem incorporar novas mensagens nestes festivais, que se tornam novas expressões culturais e que são reconhecidas como autênticas. 

A encenação envolve o deslocamento da produção cultural de um lugar para outro e a modificação para se adequar a novas condições de tempo e lugar, no entanto, o que é encenado não é superficial, pois contém elementos da tradição original. O nível percebido de autenticidade é controlado em parte pelos media e, em parte, pelas próprias pessoas.

A autenticidade existencial, que divide em dimensões intrapessoais e interpessoais, explica melhor como um participante do evento pode descobrir o seu eu interior enquanto participa de experiências que eles determinam como autênticas. 

Atrações feitas pelo homem apresentam um senso de aventura mais reduzido do que ambientes naturais porque os participantes se sentem mais seguros. A experiência é mais personalizada e menos massificada, apesar de todas serem autênticas, ainda que a diferentes níveis.

A literatura contemporânea sobre a natureza do turismo moderno e o seu impacto sobre as sociedades de acolhimento baseia-se em várias suposições importantes que podem ser formuladas da seguinte maneira: 1) o turismo é uma ajuda para levar à comoditização; 2) a comoditização destrói a autenticidade dos produtos culturais locais e das relações humanas; em vez disso, surge uma autenticidade encenada encoberta; 3) é dito que a autenticidade encenada frustra o desejo genuíno do turista por experiências autênticas. Deste modo, a comoditização destrói o significado de produtos culturais tanto para os nativos como para os turistas. No entanto, a comoditização não destrói necessariamente o significado dos produtos culturais, nem para os habitantes locais, nem para os turistas, embora possa fazê-lo sob certas condições, sendo necessário considerar o papel de veículo de autorepresentação identitária para os locais e a ampla conceptualização de autenticidade para os turistas.

Os eventos especiais aumentam a coesão social ao aproximar as pessoas a um propósito comum, no entanto, não é fácil conciliar essa coesão com o desenvolvimento turístico em prol da estimulação da economia local. Os festivais são fundados no princípio da recorrência e da continuidade, apontando para a identidade cultural, e, ao mesmo tempo, são cada vez menos ligados a lugares ou espaços, em particular, devido à contribuição de novos tipos de celebrações que conectaram diferentes espaços e lugares através de preocupações e/ou características sociais compartilhadas, apesar de também terem contribuído para a desconexão com celebrações locais. Estas mudanças refletem as noções de desterritorialização e reterritorialização, i.e., a desconstrução e reconstrução de fronteiras territoriais como resultado da mudança económica e política. Mas como é reinterpretada a identidade cultural face aos processos de descontextualização e de recontextualização resultantes? A descontextualização implica que os significados do evento só podem ser mantidos em relação ao espaço, e não ao lugar, e os facilitadores do evento, os visitantes e a comunidade anfitriã devem ser considerados em termos das suas interconexões resultantes com o espaço, não obstante o facto de que, a sua perceção do evento, inclui ambos. Elaborar um conjunto de eventos tematicamente interconectados, mas espacial e temporalmente dispersos, amplia o âmbito das perceções e representações e enaltece a gama de significados gerados. Tanto o senso de identificação (associado à combinação de espaço, tempo e memória) como o de pertença (através da construção de experiências) precisam de ser criados de acordo com as múltiplas ancoragens de um indivíduo ou grupo. Se os eventos têm uma mobilidade, têm maior hipótese de suportar esse sentimento de pertença multicultural. Festivais e eventos têm o potencial de permitir que as comunidades interpretem e reinterpretem a sua identidade cultural através da experiência e práticas que retratam, motivam e ajudam a introduzir.

Bibliografia:

Autoria das Partes I a IV: João Carvalho [1], Victor Afonso [2], Nuno Gustavo [3].
Autoria das Partes V a XII: João Carvalho[1]

Baseado no trabalho de projeto “Plano de negócios. Festival Cósmico. Festival Transformacional”, de autoria de João Carvalho, com orientação do Professor Especialista Victor Afonso e coorientação do Professor Doutor Nuno Gustavo, para conclusão do Mestrado em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos, pela Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Apresentado e defendido a 27 de dezembro de 2019.

Maio de 2020.

[1] Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos; Beach Break®.

[2] Professor Especialista (Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril; Centro de Estudos e Formação Avançada em Gestão e Economia da Universidade de Évora).

[3] Professor Doutor (Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril; Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação em Turismo).