Festivais ou rituais?
A política, religiosidade e sociabilidade festivaleira,
ou
A importância do bobo da corte.

Parte III – Significados e discursos políticos e socioculturais. Mudança Social.

O futuro comportamento do turismo de eventos dependerá da experiência integrada dos significados atribuídos aos eventos planeados e das experiências de turismo de eventos. Na medida em que mudam crenças, valores ou atitudes, as experiências são transformadoras, no entanto, é possível que sejam necessárias múltiplas experiências ou communitas para que esta ocorra. 

A forma social dos festivais enquanto local único de encontro, autóctone, rico em conteúdo, baseado no consumo local, e à volta de ligações geográficas localizadas, está em erosão, com um aumento da padronização e racionalização originadas na reestruturação de espetáculos urbanos. As formas globalizadas de produção e consumo cultural, ao limitarem a liberdade de escolha e a criatividade, são sementes da crítica imanente que contribui para a oposição e ação reflexiva. Aspetos menos positivos dos espetáculos urbanos fortalecem o controle político e económico sobre as populações, apoiadas em ideologias hegemónicas e imagens dominantes, através de promoção da retórica, propaganda corporativa e exibições espetaculares, na tentativa de transformar o ambiente construído e social da cidade num produto estético que se simboliza no consumo, lazer e entretenimento.

Novas expressões de autonomia e resistência locais contra a marginalização e exclusão social são possíveis, apesar de que a intenção da maioria dos espetáculos é pacificar as pessoas, fermentar a indiferença política e estimular o consumo. Os espetáculos têm o potencial para promover encontros criativos e possibilitar práticas sociais que podem produzir uma série de consequências imprevistas e irracionais, incluindo manifestações periódicas de revolta social. Existe uma expressão utópica nos espíritos urbanos, e a possibilidade de maior dominação por forças políticas e económicas. Torna-se inevitável reconhecer que a natureza política dos festivais é indissociável da consciência da construção social e material das populações humanas que torna o acesso ao poder uma fonte de luta constante.

Linhas de resistência contra a homogeneização e controlo corporativo são exemplificadas pelo ativismo contra a ‘Las Vegaslização’, a ‘Disneyficação’ e a ‘McDonaldização’ do espaço urbano, assim como pelos protestos contra o financiamento público de grandes espetáculos, entre outros movimentos sociais (antirracismo, anarquistas, slowfood, antiglobalização, criação de sistemas de moeda local). Estes ativistas protestam contra a falta de controlo sobre as condições das comunidades face a agendas globais baseadas no mercado e como um esforço local para iniciar um processo de reurbanização capacitador e fortalecedor como resposta aos esforços corporativos de transformar as cidades num “parque temático arqueológico encenado”.

Para evitar o reducionismo e o determinismo, e como esclarecimento sobre as possibilidades de inclusão democrática e justiça social, é necessária uma maior consciencialização sobre a dialética do controlo corporativo e da resistência local. Em festivais, a experiência global contribui para a formação cultural e contestação, que além da divergência e deboche que aí são manifestados, incluem um discurso dirigido à cultura e à ideologia dominante que se manifesta na forma de crítica ao que é visto, ouvido e experienciado num festival, sendo criada uma heterotopia, uma realização física de um espaço utópico, um “contralocal” dentro da cultura onde esta é simultaneamente representada, contestada e invertida. Estes espaços espelham a cultura, em que a refração é um discurso que a altera ou distorce, providenciando um novo discurso relativo à perceção da cultura do privilégio.

Os festivais musicais, em si, incluem a manifestação física de uma aura de audiotopia, uma aura de espaço utópico musical para desenvolver novos entendimentos do mundo social, e as qualidades de reflexão contracultural da heterotopia de Foucault, numa audio-heterotopia, onde as pessoas se encontram, aprendem, se afastam, representam e contestam, alterando a forma como se vêm a si próprios e ao mundo, de forma reflexiva, e em cuja produção de conhecimento e de discurso se refletem na forma de reação e comentário aos festivais, resultando na alteração de políticas e de comportamentos, na modelação de identidades, na compreensão intercultural e na habilidade de inverter e espelhar a cultura, preparando o palco para a proliferação de objetos e formas particulares de criticismo cultural.

O significado político do Carnaval parte da ambiguidade da sua forma cultural que possui um potencial de desempenho na função socialmente integradora, apesar de ser um veículo para a expressão de protesto, oposição e resistência. A função essencial do Carnaval é catártica, ritualizando conflitos sociais potencialmente destrutivos. O Carnaval não conhece fronteiras espaciais. Durante o Carnaval é possível viver apenas de acordo com as suas leis, isto é, com as leis da liberdade do Carnaval. O que isso não explica é o facto da resistência, ao assumir a sua forma precisa, desencadear por parte das autoridades uma resposta evidente de quem leva a sério esses protestos “simbólicos”.

A geografia social do Carnaval é uma forma específica de resistência cultural e possui uma constituição espacial distinta. O significado político do Carnaval aumenta pela proximidade residencial de ricos e pobres, possibilitando a distância associada à confrontação constante das classes baixas com a exibição de padrões sociais de classes sociais mais elevadas, mas também, e paradoxalmente, a proximidade entre classes.

O seu elemento paródico e as características inversões de convenção social dependem do conhecimento mútuo de diferentes classes. O Carnaval é um estudo de caso para explorar a interseção entre cultura e política na criação de uma geografia específica de protesto e resistência, ilustrando o potencial das formas culturais para exibir, fazer troça, contestar e transformar as relações sociais de poder, com um potencial de subversividade e de distorção entre participante e espectador, por não ser um espetáculo que é visto pelo público, mas um em que todos participam e vivem nele, pois a sua própria ideia envolve todas as pessoas, o que é elucidativo do seu aspeto sociocultural e da contradição política aí explorada.

Enquanto o Carnaval dura, não há vida fora do Carnaval.

Outros aspetos incluem o próprio tempo em que o Carnaval acontece (ocorrendo num mundo à parte, no mercado ou nas ruas, não no espaço burguês), as próprias linguagens, as formas de relações sociais (organizados à maneira do povo e contrária às formas existentes de organização política e socioeconómicas, suspensas durante a festividade), e a forma simbólica do festival (onde a liberdade e a mobilidade das ruas são centrais, assim como as reversões simbólicas e o relativo anonimato do mascarado), num evento que considera como intensamente espacial (como exercício de controlo social e como forma de protesto simbólico).

O Carnaval é, como o tumulto e a guerra, a continuação da política por outros meios.

Os festivais são pontos de partida da cultura devido ao seu envolvimento em inovação e ao seu distanciamento da moda, procurando aproximar artistas e plateias, ao proporcionar um ambiente informal e uma concentração no espaço/tempo. Doadores ganham prestígio e poder, querendo “dar o tom”. Festivais elitistas podem originar um desconforto político (que, no que lhe concerne, pode originar uma pressão para que o festival atinja um público mais amplo) e uma oposição local consequente devido a essa mesma “abertura”. Os festivais são manipulados por promotores de artes para aumentar receitas e audiências, no entanto, os eventos mais desejáveis são para um grupo seleto. As audiências “fazem” festivais na maneira como reagem a performances e gastam dinheiro. Independentemente das intenções artísticas da organização, os festivais têm de se financiar, a não ser que tenham patrocínios ou fundos próprios. O aumento da competição por fundos privados aumenta a competição por audiências em detrimento da ética do evento, e uma redução desses fundos exige uma maior procura por financiamento eterno, sendo que o festival se torna então um meio para uma programação menos aventureira, menos dispendiosa e para a criação de imagens empresariais. As agências de financiamento são compostas principalmente por elementos das elites culturais, pelo que o festival pode ser usado para compreender estratégias políticas elitistas. Outro argumento que pode comprometer festivais elitistas concerne aos benefícios para as empresas, artes e comunidades locais, pelo que nem todos podem estar interessados em parcerias governamentais.

Talvez os “reais Carnavais para elites” sejam os que se realizam em localizações não urbanas que exigem um deslocamento por parte de artistas e público. Os consumidores, ao absorverem cultura, exigem mais do mesmo ou algo diferente, o que obriga os artistas a fornecer o que exigem, para que os “consumidores” se tornem “produtores” ativos e vice-versa. Apesar de poder existir, no mundo artístico, uma preferência por encontros semiprivados, a responsabilidade dos artistas também passa pela sua faceta pública. Residências artísticas tornam-se cada vez menos comuns, devido à vertente corporativa dos festivais e devido ao facto de os artistas fazerem o circuito dos festivais, o que diminui as oportunidades para trocas artísticas. 

Esta análise pode ser incluída numa de duas perspetivas básicas dos estudos de festivais: “artes e desenvolvimento urbano”, ou “cidades habitáveis”. Na primeira, os festivais catalisam a renovação urbana, atraem turistas e investimentos de capital, melhoram a imagem de uma cidade e criam novos empregos, o que é associado a uma crescente competitividade do ambiente urbano que orienta os festivais para o mercado, numa visão em que as cidades e os seus festivais se tornam mercadorias anunciadas, comercializadas e vendidas pelas agências de turismo como qualquer outra mercadoria, apesar de que a apropriação de tais eventos pelo turismo e pelo marketing da cidade possa atingir metas económicas, mesmo não atingindo metas sociais e culturais, com potencial para exclusão social devido ao desejo de projetar uma imagem “aceitável” dos festivais, e à apropriação dos eventos por um determinado grupo.

A segunda perspetiva, mais focada na comunidade e menos na literatura, com maior evidência de resistência em eventos locais, e menor disputa de tempo e espaço, possibilita à comunidade local a utilização de eventos mercantis como base para uma autoidentificação positiva, podendo ajudar a construir o senso local, apesar de também manifestarem sinais de resistência à espectacularização dos festivais.

Os contornos espaciais e temporais dos eventos culturais serão determinados pelo resultado da luta entre participação e espetáculo. 

Os festivais também estão ligados a movimentos mais organizados de mudança social como na construção de redes, na celebração da solidariedade e no papel de festivais socialistas e contraculturais do século XX, nomeadamente nos anos 60, quando gerações se rebelaram contra a cultura dominante dos pais. Enquanto autoridades municipais “inventam” festivais num esforço para expandir o turismo fora de época e o desenvolvimento económico local, essa transformação pode ser ligada a uma filosofia do liberalismo de mercado que estendeu a cultura de mercadorias na esfera do lazer, incluindo espaços anteriormente considerados além dos limites da mercantilização, o que enfraquece o potencial de eventos de lazer para servir um espaço para expressar discordância e resistência, particularmente ao capitalismo global e à cultura mercantil, o que sugere que qualquer esforço para expressar dissensão à cultura de consumo dentro de canais dominados por corporações, resulta num produto com significados ambíguos que serão mais um símbolo da autoridade da máquina do que um agente da resistência.

Apesar de que os festivais possam ser caminhos para mudanças sociais, qualquer esforço para promover a mudança social provavelmente exigirá um esforço ativo e intencional. A ideia de festivais com campos de significado contestados, nos quais diferentes grupos ou stakeholders tentam utilizar o capital simbólico do evento para os seus próprios fins, está sublinhada em debates sobre identidade, mercantilização e autenticidade.

A arquitetura temporária nos festivais de música também contribui para a mudança social, numa oportunidade para a produção alternativa do espaço.

Bibliografia:

Autoria das Partes I a IV: João Carvalho [1], Victor Afonso [2], Nuno Gustavo [3].
Autoria das Partes V a XII: João Carvalho[1]

Baseado no trabalho de projeto “Plano de negócios. Festival Cósmico. Festival Transformacional”, de autoria de João Carvalho, com orientação do Professor Especialista Victor Afonso e coorientação do Professor Doutor Nuno Gustavo, para conclusão do Mestrado em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos, pela Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Apresentado e defendido a 27 de dezembro de 2019.

Maio de 2020.

[1] Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos; Beach Break®.

[2] Professor Especialista (Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril; Centro de Estudos e Formação Avançada em Gestão e Economia da Universidade de Évora).

[3] Professor Doutor (Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril; Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação em Turismo).