Festivais ou rituais?
A política, religiosidade e sociabilidade festivaleira,
ou
A importância do bobo da corte.

Parte I – Introdução aos festivais e ao turismo de festivais.

A génese dos festivais remonta aos tempos primitivos, através de rituais em formas de jogos, semelhantes aos festivais atuais, associados a feriados religiosos, nascimentos ou eleições de novos reis. Evoluindo para festivais sazonais ou temporais, passando pela Grécia e Roma antigas (com formas mais avançadas de festivais como o culto de Demeter, Dionisya e Saturnalia), pelos festivais de vinho e/ou comida, pelo Carnaval (um período de liberdade e diversão irrestrito, com reversões de papéis sociais e de quebras de convenções, com pessoas escondidas atrás de máscaras) ou torneios medievais, pelos festivais de música renascentistas e o declínio dos festivais dos séculos XVI e XVII (com o crescimento da Igreja Anglicana e o Protestantismo, com um estilo de vida mais austero em que formas de divertimento foram consideradas imorais), tal como nos séculos XVIII e XIX (com um maior foco no trabalho e com a escassez de tempos livres).

Novas nações como a Itália e a Grécia contribuíram para o redesenvolvimento dos festivais e do Grand Tour, um rito de passagem que originou os conceitos de “turista” e “turismo”. A revolução industrial alterou os padrões económicos e sociais, contribuindo para o desenvolvimento turístico, e surgiram as primeiras exibições mundiais, incluindo eventos culturais e de entretenimento, tal como festivais como o Oktoberfest e a Bienal de Veneza. Também nos spas, centros de vida social e exemplo atual de espaço de festivalização, eram promovidas funções culturais e de entretenimento. No século XX intensificaram-se fatores civilizacionais que contribuíram para o desenvolvimento de festivais no século anterior, o que contribuiu para o ‘boom’ dos festivais no pós-Segunda Guerra Mundial, ajudando a construir a economia e indústria, nomeadamente cultural, aos quais estão relacionados os fenómenos da ética do jogo e das sociedades da experiência (ou do espetáculo), colocando o turista num lugar de excitação e satisfação através da participação, incluindo risco, novidade e emoção. 

Para conhecer e compreender o fenómeno sociocultural e experiencial festivaleiro, importa entender quem os produz, porquê, como se planeiam e gerem, os motivos de participação, os resultados, e dinâmicas sociais, através de 3 discursos distintos associados aos papéis, significados e impactos sociológicos e antropológicos, ao turismo de festivais, e à gestão.

A definição de festival de Falassi remete-nos a um evento, fenómeno social, encontrado em virtualmente todas as culturas humanas, que atrai visitantes devido à sua cor, dramatismo da dinâmica coreográfica e estética, significados profundos, raízes históricas e envolvimento de nativos. Etimologicamente, em latim, tem raízes em festa (alegria pública, festa, divertimento, regozijo, folia), e feria (abstinência do trabalho em honra dos deuses). Além do espírito comunitário, o comportamento antitético do festival destrói a convenção social para a reforçar, o que é uma importante função dos festivais de transgressão que possibilitam a saída para um mundo de diversão hedonista, sendo um tipo particular de eventos cujo fenómeno principal é a experiência e os significados associados, e cuja importância transcende experiências individuais.

Sendo um tipo de eventos, i.e., uma atividade social delimitada no espaço/tempo, é um momento único no tempo celebrado com cerimónia e ritual, satisfazendo necessidades específicas. Os seus significados são parte integrante da experiência, antecedendo o comportamento futuro no turismo de eventos. A transformação destas experiências muda crenças, valores, atitudes e, em última instância, comportamentos, mesmo que, para tal, sejam necessárias várias experiências ou que ocorram como vínculo social. Estes significados, atribuídos por grupos sociais, comunidades e sociedade, são frequentemente contestados, dada a individualidade da sua interpretação. São construtos sociais, com significados atribuídos coletivamente e geralmente reconhecidos.

O turismo de festivais é importante no turismo de eventos, tanto que o termo festivalização reflete a supercomoditização da sua exploração comercial turística e local. Os festivais cumprem todas as propostas centrais do turismo de eventos através da atração, contribuição para imagem/marca do destino, animação e como catalisadores de desenvolvimento, sendo ativos e produtos turísticos, originando fluxos turísticos, e sendo recursos turísticos, com impactos multifacetados em diferentes elementos do espaço turístico, o que espelha a individualidade do turismo de festivais.

Em comparação com o turismo de eventos, apresentam uma complexidade social e cultural adicional, uma dimensão fortemente coletiva e são práticas nas quais comunidades expressam crenças, celebram identidades e confirmam ou contestam estruturas sociais e sistemas de valores.

Ao criar um produto e prometer um vislumbre da cultura autêntica de um lugar, a gestão da triangulação público/comunidade/festividade, evitando a dominação do último por parte do primeiro, é a força vital de um festival. A função primária do festival é renunciar e anunciar cultura, renovar periodicamente o fluxo de vida da comunidade ao criar nova energia, e é sancionar as suas instituições, tentando atingir significados simbólicos de representação do caos primordial antes da criação, ou uma desordem histórica antes do estabelecimento da cultura, sociedade ou regime onde o festival toma lugar, que só será atingida pela presença simultânea de todas as modalidades de comportamento básico da vida social diária (distorção, inversão, estilização ou disfarce), de forma a criar um caráter simbólico especial significativo, com a presença da inversão, intensificação simbólica e abstinência simbólica.

Apesar das modificações no complexo festivo, a sua importância é primária em todas as culturas, pois ainda não há forma mais significativa do animal social humano se sentir em sintonia com o seu mundo do que participar na realidade especial do festival, e da celebração da vida no tempo fora do tempo.

As tipologias de festivais variam conforme a dicotomia secular/sagrada de Durkheim, a sua localização, questões de poder, papéis sociais ou na noção de estabelecimento vs. pessoas. Além dos elementos ligados à organização do festival, existem elementos ligados aos impactos do festival na cultura e na comunidade, como o desenvolvimento de identidade e capital social, de relações interpessoais, a sua base em experiências extraordinárias e por geração por necessidades sociais, o seu relacionamento, enraizamento, forma, apresentação, celebração e consumo de e com a cultura, e a sua pertença ao património humano compreendido, nomeadamente a sua parte intangível.

O festival é um ponto de convergência nas redes relacionadas à cultura, sendo o mais bem-sucedido esforço de arte/turismo. A arte (e a atividade artística, classificada como atração turística) acrescenta vitalidade e exclusividade ao destino, podendo atrair turistas culturais que tendem a ser mais up-scale ao nível do alojamento e transporte, com potencial de atração fora da época alta, e ao fornecer uma atratividade adicional à imagem do destino face à sua vida artística, contribuindo para combater a sazonalidade. 

Pieper concebe o lazer como uma atitude mental e espiritual que envolve contemplação, celebração e totalidade, uma perspetiva que não foi adotada pelo campo de lazer contemporâneo. Ele discute a história da adoração aos deuses gregos, os ritos dionisíacos e a importância das festividades extáticas para apoiar a sociedade e a cultura (…). Para Pieper, o lazer está profundamente envolvido com “um estado mental recetivo”, “deixando as coisas acontecerem”, e “o significado básico do universo e um senso de unidade com ele”. Ele considera que a alma do lazer reside na celebração contemplativa. É através de festivais que os seres humanos afirmam o significado fundamental das suas vidas e o seu lugar dentro do universo (Pieper). (Mohr, 2017, p.22)

O lazer pode ser visto como uma oportunidade de experimentação de um diferente nível de consciência, para procurar, sintetizar e harmonizar a “essência do eu”. As experiências de pico de Maslow, momentos significativos com alegria, felicidade e realização, sentidos como de profundos significados e sentimentos emocionais, distintos do quotidiano, e gerados espontaneamente, podem ser a melhor aproximação para abordar o êxtase e o transpessoal, ou as experiências transpessoais extáticas.

Bibliografia:

Autoria das Partes I a IV: João Carvalho [1], Victor Afonso [2], Nuno Gustavo [3].
Autoria das Partes V a XII: João Carvalho[1]

Baseado no trabalho de projeto “Plano de negócios. Festival Cósmico. Festival Transformacional”, de autoria de João Carvalho, com orientação do Professor Especialista Victor Afonso e coorientação do Professor Doutor Nuno Gustavo, para conclusão do Mestrado em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos, pela Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Apresentado e defendido a 27 de dezembro de 2019.

Maio de 2020.

[1] Mestre em Turismo, com especialização em Gestão Estratégica de Eventos; Beach Break®.

[2] Professor Especialista (Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril; Centro de Estudos e Formação Avançada em Gestão e Economia da Universidade de Évora).

[3] Professor Doutor (Escola Superior de Hotelaria e Turismo